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Letras: com todas as LETRAS

Memorial do Convento - Estrutura Narrativa

Por Isabel Amadeu, Mayra Rossini, Silvana das Neves - UNIP

            Um narrador observador e onisciente, revê a história do século XVIII sob a perspectiva de um crítico socialista do século XX, com visão panorâmica, cinematográfica e dinâmica. A forma para materializar o discurso direto habitualmente, são os verbos discendi, dois pontos, travessão e aspas. Saramago não se utiliza desses recursos, adotando uma forma mais nova.

            “Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, mais iguais as pessoas por dentro do que por fora, só outras quando doentes, tomou a olhar, disse, Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que não tenha vontade, procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. O padre persignou-se, Graças a Deus, agora voarei.”

           Como se pode observar, o que marca a mudança de interlocutor é a letra maiúscula e não a notação habitual, o que, a nosso ver, pode confundir algum leitor menos atento. Saramago recheia seu texto de conhecimento da História de Portugal e do Brasil, usando personagens e fatos que realmente existiram e ocorreram. Dessa forma a ficção e a realidade fundem-se de forma a criar situações que se encaixam perfeitamente na linha do "Realismo Mágico" tão conhecido na literatura latino-americana.

            Outro traço marcante na narração do romance Memorial do Convento é o jogo de tempos de narração, como se o narrador se colocasse, simultaneamente, como contemporâneo dos fatos narrados e como contemporâneo do leitor. Assim, é que logo de início, o narrador joga com a sua ambigüidade temporal, falando ora no pretérito, ora no futuro.

            “D. João, quinto do nome na tabela real, irá esta noite ao quarto de sua mulher, D. Maria Ana Josefa, que chegou há mais de dois anos da Áustria para dar infantes à coroa portuguesa e até hoje não emprenhou.”

            O narrador, neste trecho, fala como contemporâneo do fato narrado (“até hoje não emprenhou”), mas antecipa o futuro (o rei irá ao quarto da rainha esta noite). O narrador, sendo contemporâneo nosso domina também o futuro e o destino de suas personagens.

            Este jogo de antecipações do futuro próximo ou distante ocorre ao longo de todo o livro. Essas antecipações feitas pelo narrador servem não apenas como explicação ou comentário dos acontecimentos, mas também para aumentar a cumplicidade entre o narrador que nunca fala em 1ª pessoa ( e portanto não pode apelar para a sua personalidade como atrativo) e o leitor, que também sabe o que virá a acontecer e compartilha com o narrador esse conhecimento, que os personagens não têm.

            “Veja-se este músico que outra música que não esta não saberia compor, que não estará vivo daqui a cem anos para ouvir a primeira sinfonia do homem, erradamente chamada a Nona.”

            Aqui o narrador faz uma analogia à musica tocada por Scarlatti  e a Nona sinfonia de Bethoven, que só ele e o leitor conhecem.

            “(...) nem foi preciso envocar S. Cristóvão, ele já estava, vigiando o trânsito, viu aquele avião desgovernado, deitou-lhe a grande mão e evitou a catástrofe, para seu primeiro milagre aéreo não esteve nada mal.

            Desta vez, o narrador “prevê” que São Cristóvão viria ser o protetor doa aviadores e cita o avião, que na época ainda não existia.

            Rompendo com a narrativa tradicional, Saramago inova na estrutura (25 capítulos soltos, sem identificação), na linguagem, na ideologia. Saramago é capaz de escrever duas páginas de seu romance, em um único parágrafo. Segundo o professor Dácio Antônio de Castro, "o projeto literário de Saramago consiste em fornecer uma visão do passado sob uma nova perspectiva, iluminada por um realismo crítico-social, que se fundamenta na ideologia marxista. Esse processo de dessacralização do passado torna-se literário pela exploração de recursos expressivos como a ironia e a paródia, que, associados a elementos míticos e oníricos, conferem à obra uma dimensão artística que ultrapassa os limites da história e da ideologia e se aproxima do ‘fantástico’ ..."

            O narrador da referida obra, assume posição de um cronista antigo, mas trata-se de um cronista que faz paródia da linguagem solene e minuciosa das crônicas.

            Quando se trata de descrever o luxo da Corte, as solenidades religiosas ou as ações do rei, a linguagem do narrador é arcaizante ( o rei é “el-rei”), os períodos são longos e as descrições são minuciosas, baseadas sobretudo em extensas e exaustivas enumerações (por exemplo, no desfile de ordens religiosas na procissão de Corpus Christi). A paródia se evidencia na combinação de vocábulos altissonantes, eufemismos e expressões vulgares.

            “Enfim, el rei abriu os olhos, escapou, não foi desta vez, mas fica com as pernas froxas, as mãos trêmulas, o rosto pálido, nem parece aquele galante homem que derruba freiras com um gesto (...) o real e infatigável cobridor.”

            Outras vezes, a linguagem se torna coloquial, deixa de lado o tom solene e paródico e adquire um tom de simpatia, especialmente pelos humildes:

            “Enquanto estavam a ser levadas as juntas, os homens, espalhados pela crista do monte, à torreira do sol, olhavam o vale sossegado, as hortas, as sombras frescas, as casas que pareciam irreais, tão aguda era a impressão de calma que irradiava delas. Pensariam isso ou não, talvez apenas esta simplicidade, se me apanho lá em baixo, ainda vou julgar que é mentira.”

            Como já se disse, o narrador não fala em 1ª pessoa, mas intervém constantemente, conquistando a empatia do leitor através de seus comentários, por vezes, bastante coloquiais:

            “(...) deu com multidão de homens, exagero será dizer multidão, enfim, uma centena deles.”

            Essa auto-correção é própria da linguagem falada. Outras vezes o comentário se faz como uma observação genérica e “filosófica”:

            “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo a sua órbita.”

             O comentário pode se apresentar também como um provérbio ilustrativo que permite concluir ou iniciar uma parte da narrativa.

            “Mas cada coisa tem seu tempo.”

           Outro fator importante, é a crítica ao clero, que aparece constantemente durante a narrativa:

           (...) a uma casa onde o clérigo já estava vivendo com outras inocentes mulheres, entraram, mas tão desatentos à obrigação que não deram com ele, que estava metido numa cama, e foram a outra onde lhes pareceu que estaria, assim dando vaza para que o padre saltasse, nu em pêlo (...)

            (...) e eram isso oito horas da manhã, começava bem o dia, gargalhadas pelas portas e janelas, ao ver o clérigo a correr como uma lebre, com os pretos atrás, e ele de verga tesa, e bem apeirado, benza-o Deus, que um homem tão dotado o lugar dele não é a servir nos altares mas na cama de serviço ás mulheres (...)

           Percebemos então, que José Saramago constrói a narrativa de forma totalmente inovadora. No início da leitura, esta se torna cansativa, e é necessário retornar àquilo que já se leu, mas com o passar das páginas a leitura torna-se sedutora e interessante.

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