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O CORTIÇO Aluísio Azevedo

O Cortiço 
Aluísio Azevedo - 1890


João Romão, português, bronco e ambicioso, ajuntando dinheiro a poder de penosos sacrifícios, compra pequeno estabelecimento comercial no subúrbio da cidade (Rio de Janeiro). Ao lado morava uma preta, escrava fugida, trabalhadeira, que possuía uma quitanda e umas economias. Os dois amasiam-se, passando a escrava a trabalhar como burro de carga para João Romão. Com o dinheiro de Bertoleza (assim se chamava a ex-escrava), o português compra algumas braças de terra e alarga sua propriedade. Para agradar a Bertoleza, forja uma falsa carta de alforria. Com o decorrer do tempo, João Romão compra mais terras e nelas constrói três casinhas que imediatamente aluga. O negócio dá certo o novos cubículos se vão amontoando na propriedade do português. A procura de habitação é enorme, e João Romão, ganancioso, acaba construindo vasto e movimentado cortiço. Ao lado vem morar outro português, mas de classe elevada, com certos ares de pessoa importante, o Senhor Miranda, cuja mulher leva vida irregular. Miranda não se dá com João Romão, nem vê com bons olhos o cortiço perto de sua casa. No cortiço moram os mais variados tipos: brancos, pretos, mulatos, lavadeiras, malandros, assassinos, vadios, benzedeiras etc. Entre outros: a Machona, lavadeira gritalhona, "cujos filhos não se pareciam uns com os outros"; Alexandre, mulato pernóstico; Pombinha, moça franzina que se desencaminha por influência das más companhias; Rita Baiana, mulata faceira que andava amigada na ocasião com Firmo, malandro valentão; Jerônimo e sua mulher, e outros mais. João Romão tem agora uma pedreira que lhe dá muito dinheiro. No cortiço há festas com certa freqüência, destacando-se nelas Rita Baiana como dançarina provocante e sensual, o que faz Jerônimo perder a cabeça. Enciumado, Firmo acaba brigando com Jerônimo e, hábil na capoeira, abre a barriga dó rival com a navalha e foge. Naquela mesma rua, outro cortiço se forma. Os moradores do cortiço de João Romão chamam-no de "Cabeça-de-gato"; como revide, recebem o apelido de "Carapicus". Firmo passara a morar no "Cabeça-de-Gato", onde se torna chefe dos malandros. Jerônimo, que havia sido internado em um hospital após a briga com Firmo, arma uma emboscada traiçoeira para o malandro e o mata a pauladas, fugindo em seguida com Rita Baiana, abandonando a mulher. Querendo vingar a morte de Firmo, os moradores do "Cabeça-de-gato" travam séria briga com os "Carapicus". Um incêndio, porém, em vários barracos do cortiço de João Romão põe fim à briga coletiva. O português, agora endinheirado, reconstrói o cortiço, dando-lhe nova feição e pretende realizar um objetivo que há tempos vinha alimentando: casar-se com uma mulher "de fina educação", legitimamente. Lança os olhos em Zulmira, filha do Miranda. Botelho, um velho parasita que reside com a família do Miranda e de grande influência junto deste, aplaina o caminho para João Romão, mediante o pagamento de vinte contos de réis. E em breve os dois patrícios, por interesse, se tornam amigos e o casamento é coisa certa. Só há uma dificuldade: Bertoleza. João Romão arranja um piano para livrar- se dela: manda um aviso aos antigos proprietários da escrava, denunciando-lhe o paradeiro. Pouco tempo depois, surge a polícia na casa de João Romão para levar Bertoleza aos seus antigos senhores. A escrava compreende o destino que lhe estava reservado, suicida-se, cortando o ventre com a mesma faca com que estava limpando o peixe para a refeição de João Romão.

Observações importantes e textos

O ROMANCE SOCIAL
"Desistindo de montar um enredo em função de pessoas, Aluísio atinou com a fórmula que se ajustava ao seu talento: ateve-se à seqüência de descrições muito precisas, onde cenas coletivas e tipos psicologicamente primários fazem, no conjunto, do cortiço a personagem mais convincente do nosso romance naturalista." (Cf. Prof. Alfredo Bosi).
Todas as existências se entrelaçam e repercutem umas nas outras. O Cortiço é o núcleo gerador de tudo e foi feito à imagem de seu proprietário, cresce, se desenvolve e se transforma com João Romão.

CRÍTICA AO CAPITALISMO SELVAGEM
O tema é a ambição e a exploração do homem pelo próprio homem. De um lado João Romão que aspira à riqueza e Miranda, já rico, que aspira à nobreza. Do outro, a gentalha", caracterizada como um conjunto de animais, movidos pelo instinto e pela fome.
"E naquela terra encharcada o fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a fervilhar, a crescer um mundo, uma coisa viva, uma geração que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro e multiplicar-se como larvas no esterco. "
"As corridas até a vende reproduziam-se num verminar de formigueiro assanhado."
"Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglomeração tumultuosa de machos e fêmeas. "
A redução das criaturas ao nível animal (zoomorfização) é característica do Naturalismo e revela a influência das teorias da Biologia do Século XIX (darwinismo, lamarquismo) e do 

DETERMINISMO (RAÇA, MEIO, MOMENTO).
".. depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas forças, caiu morto na rua, ao lado de carroça, estrompado como uma besta.
'Leandra... a ‘Machona’, portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal do campo
"Rita Baiana... uma cadela no cio".

 

A FORÇA DO SEXO
O sexo é, em O Cortiço, força mais degradante que a ambição e a cobiça. A supervalorização do sexo, típica do determinismo biológico, e do naturalismo, conduz Aluísio a buscar quase todas as formas de patologia sexual, desde o "acanalhamento" das relações matrimoniais, adultério, prostituição, lesbianismo, etc. Observe esta, descrição de Rita Baiana, e do fascínio que exercia sobre o português Jerônimo:
"Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui. ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas de fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras, era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e era o açúcar gostoso, era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; e/a era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, e muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras, embambecidas pela saudade de terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro da sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbam em tomo da Rita Baiana o espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca."

OS TIPOS HUMANOS
João Romão
"E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia o vinha de pedreira para a venda, de vende As hortas é ao capinzal, sempre em mangas de camisa, tamancos, sem meras, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas".
".. possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afrontava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estepe cheio de palha".
Albino
"Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado, fraco, cor de aspargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre, que lhe caía, numa só linha, até o pescocinho mole e tino. "
Botelho
"Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático, cabelo branco, curto e duro como escova, barba e bigode do mesmo teor, muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho de pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-lhe ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio ... foi lhe escapando tudo por entre as suas garras de ave de rapina ".
Você tem nestes trechos excelentes exemplos de descrição realista e objetiva.

A SITUAÇÃO DA MULHER
As mulheres são reduzidas a três condições: primeira, de objeto, usadas e aviltadas pelo homem: Bertoloza e Piedade; segunda, de objeto e sujeito, simultaneamente: Rita Baiana; terceira, de sujeito, são as que se independem do homem, prostituindo-se: Leonie e Pombinha.

O DESFECHO DO ROMANCE
Delatada por João Romão, os antigos donos de Bertoleza diligenciam para capturar a escrava fugida. Procurada pelos policiais, a negra se suicida.
Observe o exagero da cena, e a ironia do desfecho.
"A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar. 
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto, e entes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lodo. 
E depois emborcou para a frente, rungindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue. 
João Romão fugira até o canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com os mãos. 
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito." 

ANÁLISE MAIS APROFUNDADA DO PROF. AFFONSO ROMANO DE SANT'ANA

1. INTRODUÇÃO
Enquanto O Guarani e A moreninha buscam principal suporte no mito e na lenda., O Cortiço1 se realiza ao realizar os pressupostos científicos do séc. XIX revertidos para a série literária através do que se convencionou chamar de Naturalismo. Através de leituras científicas ou paracientíficas e absorvendo obras naturalista de autores europeus, Aluísio Azevedo fixou no livro que analisaremos alguns modelos científicos vigentes no séc. XIX gerados no campo da termodinâmica e da biologia.
Da termodinâmica ele se utiliza de dois conceitos básicos, que em sua ora aparecem metaforicamente revestidos:

a) “lá pérdida de um tipo de energía implica siempre la aparición de una canitdad determinada de algún, outro tipo de energía. La energía no puede crearse ni destruirse, sino sólo transformarse”;2

b) “el segundo principio general de la termodinámica dice aunque la energía del universo permanece constante, su grado de desorganización tiende a aumentar (Este grade de desorganización se llama a veces entropia).”3

O evolucionismo é ilustrado insistentemente dentro da estória do cortiço podendo-se localizar aí o revérbero de leis e princípios formulados por Mendell, Darwin, Huxley., Spencer e uma série de outros cientistas e pensadores que Hull rastreia em seu livro Histori y Filosofia da Ciencia para mostrar os focos de idéias estruturadoras da vida do século passado na civilização ocidental. A evolução sob forma de "progresso" aí aparece desfiando os organismos simples e complexos. O que a ciência nos dá como progresso biológico, nessa narrativa aparece sob forma sociológica e social. O personagem Jerônimo, por exemplo, em contraposição a Romão comprova o princípio que “pueden, en afecto, imaginarse circunstancias tolerables para um organismo rudo y casi insesible y que, en cambio, determinarían la ruina de um tipo más sensitivo”.4 Na análise que se segue retomaremos algumas colocações teóricas e Hull e as aplicação à narrativa de Azevedo. Por ora, basta assinalar introdutoriamente que a ligação desse romance com modelos situados na série científica revela o espírito simétrico de sua composição, limitando o lúdico e o aleatório. Nesse sentido, em relação à série literária, O Cortiço se identifica como uma narrativa de estrutura simples compromissado com  modelos exteriores ao seu texto, ainda que no enunciado sua produção o coloque do lado da contra-ideologia,  uma vez que denuncia o código social vigente criticando o espaço da ideologia dominante.

2. PROPOSIÇÃO
Este trabalho se propõe a desenvolver as seguintes observações sobre a estrutura de O Cortiço:

1. Localizam-se aí dois grandes conjuntos: o conjunto 1 (O cortiço São Romão) e o conjunto 2 (a casa do Miranda), que definindo-se como conjunto simples e conjunto complexo, respectivamente, mantêm entre si um restrito e controlado regime de trocas.

2. Ambos os conjuntos estão sujeitos a um sistema de transformações. Essas transformações ocorrem num sentido ascendente e descendente, conforme os elementos se identifiquem com as leis da evolução e de entropia de seu universo.

3. Todo esse sistema de transformações é exemplificado por personagens protótipos, que são reduplicados em uma série de  outros personagens secundários. Como uma célula que se multiplica por meios e a narrativa vai se reduplicando simetricamente na realização de modelos inspirados na série científica.

3. DESENVOLVIMENTO
3.1. O Conjunto Simples e o Conjunto Complexo

Os 23 capítulos que compõem a narrativa de O Cortiço e que contam uma estória com princípio, clímax e desfecho, dentro de uma disposição tradicional, podem ser reestudados pela configuração de dois conjuntos que agrupam elementos de características semelhantes.
O conjunto 1 – cortiço de São Romão – define-se por sua composição elementar. Seus elementos têm uma constituição primária e estão ao nível da natureza e do instinto. O conjunto 2 – casa do Miranda – mostra a vigência de certas regras mais definidas culturalmente. Existe entre seus elementos uma coexistência baseada num maleável regime de trocas, que indica a predominância  de outros interesses que não o puramente instintivo.
Portanto, ainda que correndo o risco de simplificar a questão se poderia dizer que o conjunto 1 está do lado da Natureza e o conjunto 2 está do lado da Cultura. Toda a movimentação de Romão, por exemplo, é para sair do solo puramente biológico e instintivo em que se agita o cortiço e entrar numa organização social regida por um sistema jurídico e político representativo da Cultura. De uma certa forma repete-se aqui a oposição inicial de O Guarani e que já analisamos: a casa, seja de D. Antônio Mariz ou de Miranda, estabelecendo-se do lado da Cultura, define-se também como o jardim diante da floresta que é a habitação dos Aimorés  e dos favelados: “hay un conflitcto entre el jardín y la selva, y la naturaleza primitiva tiende a restablecer la vegetación selvaje en el jardín en cuanto se produce una disminución de los esfuerzos de los jardineros”. 5
O conjunto simples nivela-se e vários sentidos, porque a sua dominante é a horizontalidade. De um ponto de vista racial sua grande maioria é de pretos e mestiços, e os elementos de outras raças que para aí vêem acabam por se comportar como a maioria. De um ponto de vista social, todos são empregados e assalariados, vivendo de pequenos misteres sendo, portanto, economicamente dependentes do regime imposto pelos elementos do conjunto 2. Nivelam-se por baixo pela miséria e pela pobreza. Agrupam-se num coletivismo tribal e identificam-se mais pelas semelhanças do que pelas diferenças. O próprio nome – “cortiço” – marca a sua natureza. Num cortiço , metaforicamente falando, também a grande quantidade de abelhas são as operárias com funções semelhantes, excetuando-se somente a abelha rainha. Não estranha, portanto, que o narrador insista numa seqüência de imagens de animais e insetos para caracterizar esse conjunto. Tome-se como exercício de pesquisa o cap. III relatando o despertar do cortiço. Por aí, através de um processo de antropomorfização não se diferenciam objetos, homens, animais e vegetais. É tudo um bando de “machos e fêmeas”, numa “fermentação sangüínea, naquela gula viçosa de plantas rasteiras”, mostrando “o prazer animal de existir”. Há um “verminar constante de formigueiro assanhado” e “destacam-se risos, sons de vozes que se alternavam, sem saber onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas”.
Os elementos marcam-se pela sua impessoalidade, dissolvidos  na comunidade instintiva e animal. Para ressaltar essa horda de seres primitivos, o narrador acentua a degradação dos tipos aproximando-os insistentemente de animais e conferindo-lhes apelidos. Leandra com “ancas de anima do campo”; Neném como uma “enguia”; Paula com “dente de cão” e Pombinha, com esse nome no diminutivo ocultando seu verdadeiro nome, significa a fusão  do natural e do cultural, quando o narrador privilegia o apelido de caracterização zoomórfica. E assim, narrativa a dentro persiste um movimento de zoomorfização das criaturas, nivelando-as por baixo, pelo que tem de mais elementar. Romão e Bertoleza trabalham como uma “junta de bois’; o cortiço exala um “fartum de besta no coito”, os personagens se xingam de cão, vaca, galinha, porco; Jerônimo com sua “lascívias de macaco e cheiro sensual dos bodes”; Piedade abandonada surge “ululante como um cão”, soltando um “mugido lúgubre” como “uma vaca chamando ao longe”.
Poder-se-ia fazer um levantamento também da sujeição dos elementos do conjunto 1 ao instinto e aos sentidos mostrando que existe uma abertura maior da parte deles para as coisa físicas. São todos sensíveis a um código sonoro, visual, aromático e tátil. Estão expostos às leis naturais reagindo dentro de um princípio de estímulo e resposta em relação ao ambiente. Este estudo que se  poderia fazer partindo do que Lévi-Strauss fez com uma  série de mitos sul-americanos  em Le Cru et le Cuit encontraria seu melhor exemplo na imagem do sol e sua interferência não apenas sobre a comunidade, mas obre  uma personagem especial, Pombinha, como é narrado no cap. IX. Noutra parte deste estudo nos referimos ao personagem Jerônimo exposto às intempéries dos trópicos  revelando-se como elemento mais sensível às transformações.
Continuando um estudo semiológico sobre as técnicas que o narrador emprega para nivelar os elementos do Conjunto , encontraríamos a própria fisionomia ou planta da expansão do cortiço desde sua célula inicial. Aí conta a extensão, o linear, crescimento horizontal que reafirma a zoomorfização expressa conteudisticamente. A reprodução é quantitativa. Segue o modelo biológico: “El organismo empieza por ser una sola célula. Esta se divide en dos; cada uma de éstas se divide a su vez e así sucessivamente. Mientras se multiplican, las diversas células se desarrolan de diversos modos, adaptádose así a la formación de los diversos órganos del indivíduo”.6
No primeiro parágrafo encontramos Romão como proprietário de uma venda. Depois que se associa a Bertoleza explorando-lhe o corpo e o trabalho, usa propriedade  se expande: compra um pouco de terra ao fundo da taverna, rouba material do terreno vizinho, acaba construindo  três casinhas “que foram o ponto de partida do grande cortiço São Romão”. Hoje quatro braças de terra, manhã seis, depois mais outras, ia vendeiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos de sua bodega; e, a proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o número de moradores (...) dentro de um ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido  entre as suas casinhas e a pedreira”.
Por outro lado, seu negócio melhorava. Com sua ‘febre de possuir” ele transformava a simples taverna num bazar com produtos importados, e além de Bertoleza tema vários caixeiros. Ao fim o cortiço já se compõe de 95 moradias. Realizou-se o modelo biológico da transformação da vida  pela meiose progressiva: “e naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, ao esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, a multiplicar-se como larvas no esterco”.
Assim a horizontalidade entre Venda ?Avenida passa por diversas etapas progressivamente: Taverna ? venda ? quitanda ? bazar ? grande armazém ? estalagem ? sobrado ? Avenida São Romão.

3.2. Conjunto Complexo
A expansão do conjunto 1 esbarra na instauração do conjunto complexo em sua verticalidade. Pode-se proceder a uma análise semiológica dos elementos a partir do desenho do sobrado do Miranda e os lugares se explicam  e   se completam em confronto com os elementos do conjunto 1. Instaura-se a verticalidade a partir do nome do Miranda: Lat. Miranda, gerundivo de miror, admirar, que deve ser admirado, e por ampliação – “evidente”. Miranda contempla lá de cima o avanço de Romão preparando-se para se beneficiar, e é lá de cima de sua janela que assiste aos festejos e às brigas do cortiço. Estela (estrela) é “senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza”; é ela quem trouxe a fortuna ao Miranda através de seu dote; Zulmira – a excelsa, colocada também lá em cima no sobrado em sua palidez de adolescente; Henriquinho (rad. rik, poderoso, rico, príncipe da casa”), “tinha quinze anos e vinha terminar na corte alguns preparatórios que lhe faltavam para entrar na Academia de Medicina (cap. II). E aí, nesse conjunto, se instala Botelho, diferente dos demais; seu nome significa parasita, alga. E o próprio narrador cuida  de chamá-lo de “parasita”, mostrando como “vegeta à sombra do Miranda” servindo de mediador nas transas sexuais de Henriquinho e Estela, e depois  no casamento de Romão e Zulmira.
Esse conjunto complexo tem a caracterizá-lo sua capacidade  de barganha mantendo um regime de trocas necessárias a sua própria sobrevivência, enquanto o conjunto simples resolve seus conflitos ao nível do instinto e da natureza impondo a violência como solução para os impasses. Metaforicamente se poderia dizer que a atitude  de seus elementos é antropofágica: não existe uma possibilidade de mediação constante. O nível de mediação é muito baixo. Entre dois elementos em conflito (A e B) a única solução é a eliminação de um deles. Coabitar é inviável. A única solução é a violência e a morte. Exemplos:

a) Relação Bruno/Leocádia: quando Bruno descobre que Leocádia encontra-se com Henriquinho, a solução que encontra é a destruição de sua casa e a expulsão da mulher sob ameaça de morte.

b) Relação Jerônimo/Firmo: a rivalidade por causa da mulata Rita configura-se por uma briga de porrete versus navalha, e num outro ponto da narrativa pelo assassinato de Firmo.

c) Relação Romão/Bertoleza: ao se ver traída por Romão, Bertoleza cometa violência contra si mesma e rasga a barriga  derramando vísceras no chão da cozinha.
d) Relação Rita/Piedade: reduplicando o conflito Firmo/Jerônimo, brasileiro/português, branco/mulato xingando-se as personagens com os mais diferentes nomes de animais, reafirmando o primitivismo de seu conjunto.

Já o outro conjunto – o complexo, soluciona os conflitos efetivando trocas de objetos e dons. Na verdade, mais objetos do que dons, uma vez que o romance se esforça por cumprir os preceitos naturalistas ressaltando sempre o aspecto físico/objetivo das relações.

a)      Relação Estela/Miranda: Apontada desde o princípio da narrativa  como uma associação de interesses onde a mulher entrava com o capital e o homem com a sua gerência, destaca-se a função do dote, na formação dessa sociedade econômico-sentimental.
Os outros relacionamentos repetem a mesma permissividade. Botelho sabe das relações Henriquinho/Estela, mas não fala porque precisa agradar ao marido e à mulher para permanecer na casa. Miranda tolera essa e outras infidelidades por questão de dinheiro e para manter as aparências.
Retomando as comparações entre um conjunto e outro  assim teríamos a caracterizá-los:

 

 

Conjunto 1 – simples – instinto – animal – horizontal – VIOLÊNCIA
Conjunto 2 – complexo – racional – cultural – vertical – TROCA

3.3. O sistema de trocas e a passagem do simples ao complexo
Até agora estamos considerando as relações internas de cada conjunto, sem precisar, as funções que estabelecem entre si. Poder-se-ia, usando de terminologia biológica  e científica tão ao agrado do Naturalismo, dizer que o regime de trocas dá-se num sentido endógeno (dentro do conjunto) e exógeno (entre os conjuntos). Neste sentido há que considerar a relação que envolve os personagens Romão./ Miranda, representando cada um o seu conjunto respectivamente. A relação entre os dois envolve a passagem do simples ao complexo. Na medida em que Romão é bem sucedido nas trocas que propõe escapa às leis quantitativas e horizontais de sue conjunto para ir se comportando segundo os princípios de outro grupo. Aí procura  a verticalidade da cultura, perseguindo títulos de nobreza  que devem soerguer o indivíduo da massa. Num trabalho  mais detalhado pode-se localizar e descrever todo o processo de transformações por que passa o personagem  ao se aproximar de Zulmira (metonímia do conjunto complexo).
A evolução de Romão se dá em duas fases: antes e depois do encontro de suas propriedades com as propriedades de Miranda. Este encontro, ou melhor, confronto, força a construção de um muro entre os dois. O muro passa a simbolizar o conflito e a sua possibilidade de superação, na medida em que se caracteriza como mais um obstáculo a vencer no avanço do personagem. A propósito, se poderia lembrar aqui que este romance de Aluísio se presta muito bem à análise descritivista  de  Claude Bremond que ressalta a sucessão de obstáculos e tarefas a vencer pelo herói na realização da estória. Não a empregamos aqui por achar que ela trabalha num setor muito restrito e limitado da análise. Mas valeria a pena utilizá-la ainda que como exercício para alunos.
O muro estabelece-se, então, como a diferença entre Romão e Miranda, é o limite entre a “selva” e o “jardim”, entre a “natureza” e a “cultura”. Como a trajetória de Romão implica na aceitação das “regras” da cultura, ele desenvolve sua capacidade de negociação e troca. Vejamos sucintamente a evolução das fases em Romão até encontrar o obstáculo e superá-lo.

1ª fase
proprietário da venda
proprietário de Bertoleza
proprietário da terra/casa
proprietário  de 3 casas
proprietário do terreno 
proprietário da pedreira
proprietário do cortiço – 95 casas

2ª fase
“travou-se, então, luta renhida e surda entre o português, negociante de fazendas por atacado, e o português negociante de secos e molhados” (cap. 1, p. 28).
Símbolo da querela são os termos empregados pelo narrador para fixar no nível zoomórfico o impasse do conflito. Romão coloca um cão de fila no seu terreno para guardar o material que amealhava. Tal cão ameaçava a família do Miranda. “Em compensação, não caía no quintal do Miranda galinha ou frango, fugidos da cerca do vendeiro, que não levasse imediato sumiço"(cap. 1).
Assim se poderia visualizar o jogo de imagens no conflito:

Romão ? (cão de fila) ? MURO ? (galinha) ? Miranda 

3ª fase
Inicia-se uma terceira fase entre os dois conjuntos, quando resolvem partir para um sistema de alianças. Através de um processo lento de conquista social e econômica, Romão consegue a mão de Zulmira como forma de conseguir as comendas e títulos futuros. Miranda, em contrapartida, reforça-se economicamente com esta aliança. Ao se verificar essa transformação de Romão, ele já não é mais o simples vendeiro, mas o proprietário da avenida São Romão.

3.4. Sistema de transformações comparadas
As transformações por que passa os elementos, cumprindo as leis genéticas, biológicas, econômicas, raciais e ecológicas podem ser estudadas através de confrontos. Esse sistema de transformações engloba o regime de trocas que é um dos elementos que possibilitam a modificação. Podemos pesquisar essas alterações nos personagens através de três deles, por coincidência, três portugueses que assumem espaços e funções diversas na estória: Romão, Miranda e Jerônimo.

a) Romão: significa o elemento vitorioso segundo uma seleção das espécies. Ele se modifica, mas ascende na escala social e econômica assumindo os valores tidos como positivos na cultura brasileira.

b) Miranda: sua posição de aristocrata com pequenas variações se mantém e ele atinge o baronato.

b)      Jerônimo: depois de atingir o máximo de sua posição de assalariado, envolvido pelos elementos naturais do conjunto 1, no interior do qual foi viver, entra em degenerescência.

 

Teríamos, então, uma linha ascendente (Romão) que seguiria o modelo teórico do primeiro princípio da termodinâmica e reafirmaria os princípios da seleção natural das espécies. Teríamos uma linha estável (Miranda) reafirmando que os elementos sempre se transformam pois “la energía no puede crearse ni destruirse, sino sólo transformarse”; e, em terceiro lugar, a figura de Jerônimo (linha descendente) exemplo de entropia do sistema.
Para termos uma melhor idéia do contraste entre os personagens, tomemos os dois exemplos extremos: Romão e Jerônimo. Ambos descrevem uma linha ascensional e descendente com evidente sentido ideológico e sua interpretação: a cada avanço na escala social e financeira (no caso de Romão) corresponde a um degrau abaixo na degradação moral e humana. Para visualizar e esquematizar arbitrariamente as trajetórias desses dois personagens teríamos:

a) Romão: Visconde proprietário da avenida, proprietário  da estalagem, proprietário do cortiço, proprietário   do terreno
vendeiro, falseia alforria de Bertoleza, rouba materiais, rouba Domingues e Libório cumplicidade implícita na morte de Bertoleza.

b) Jerônimo: Quando aparece na estalagem de Romão é comparado a um Hércules. A figura mitológica aí não é acidental, mas ganha mais sentido com a fisionomia do personagem depois que entra em decadência. Ele aí chega com ideais de ascensão, pois saíra da roça onde “tinha que sujeitar-se a emparelhar com os negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado como uma besta, sem aspirações nem futuro, trabalhando eternamente para outro”(cap. V). Todo esse capítulo é a exaltação das virtudes de Jerônimo como um tipo clássico-mitológico.

No interior do conjunto 1 aos poucos vai se envolvendo sensorial e irracionalmente como novo ambiente. O narrador  estabelece uma competição entre a sensibilidade européia e a brasileira, descrevendo como o europeu sucumbe quando abre seus sentidos aos sol dos trópicos. A integração de Jerônimo se realiza segundo uma “fuga dos cinco sentidos” – parafraseando Lévi-Strauss em suas análises em Le Cru et le Cuit. Ele se entrega à música brasileira (audição) e olvida os fados portugueses: não resiste à luz dos trópicos e à dança da baiana Rita (visual); entorpece-se com o seu aroma, com “aroma quente dos trevos e baunilhas, que o atordoava nas matas brasileiras” e diante do perfume da mulata prefere-lhe o café e a cachaça em vez do chá preto da mulher (olfativo-gustativo). Outros dados do código sensorial ainda se associam formando  uma rede de envolvimento que levam o português a ser avesso do que no princípio parecia. Esse aspecto da análise deve ser ainda aprofundado como exercício de análise. Aqui nos limitamos a essas indicações.
Sintetizando o processo transformativo, inteiramente diferente do de Romão teríamos a seguinte ilustração das fases de Jerônimo:

contramestre
faz lajedos
faz paralelepípedos
quebrador de pedras 
colono 

briga com Firmo
mata Firmo
deixa a família
miséria

A linha descendente de Piedade, mulher de Jerônimo, é semelhante. Ela perde sua estabilidade quando o marido se envolve por meio ambiente brasileiro (metonimicamente representando por Rita), e passa pelos mesmos degraus de decadência, conhecendo a decadência física, a desorganização do lar, a embriaguez, abriga com Rita e a miséria. Ela reduplica o modelo de transformações de Jerônimo exemplificando a entropia do sistema.

3.5. Função da mulher no sistema de transformação
Como vimos anteriormente a mulher participa do regime de trocas, ela dá e recebe. A posição da mulher na estética naturalista, no entanto, é bem diversa daquela na estética romântica. Descrita mais objetivamente, enraizada na realidade, ela surge sem as idealizações e falseamentos. Nessa narrativa de Azevedo, a mulher é descrita principalmente como fêmea, que se acasala com o macho por interesses físicos e materiais.
Três tipos diferentes de mulher encontramos aqui descritos nessas relações: 

a) a mulher-objeto que é trocada como nas sociedades primitivas; 

b) a mulher sujeito-objeto que aceita as regras do sistema dando tanto quanto recebe; c) a mulher-sujeito que regula os regimes de troca capaz de impor condições e manobrar o macho em benefício próprio.

a) Mulher-objeto. Exemplifica-se inicialmente em Bertoleza, elemento feminino que se associa ao masculino (Romão) para criação do cortiço. Macho e fêmea trabalham dia e noite, e quanto mais o tempo passa, mais o macho se afasta da fêmea, uma vez que ela era peça fundamental apenas no princípio da carreira de Romão: “à medida que ela galgava posição social, a desgraçada descia mais e mais, fazia-se mais escrava e rasteira”. Outro exemplo é Zulmira: vai ser outro degrau utilizado por Romão, agora não no conjunto 1, mas no conjunto 2. A passagem de um conjunto ao outro implica na presença de um elemento feminino no regime de troca. Reafirmam-se certas regras da sociedade, daquilo que José de Alencar chamara de “mercado matrimonial”. As ligações entre ele e Bertoleza e ele e Zulmira são totalmente circunstanciais. As mulheres aí são elementos cambiáveis no comércio que ele opera.

b) Mulher sujeito-objeto. A relação Estela/Miranda coloca os dois em nível de igualdade. Ambos se beneficiam. Essa relação ajusta o regime de trocas sexuais, que são a contrapartida das trocas econômicas e sociais. A dupla Rita/Jerônimo exemplifica o  mesmo regime de trocas. O Narrador vem ao nível do enunciado para dizer que entre eles se cumpria o ritual da atração racial. Rita é metonímia da natureza tropical  enquanto Jerônimo é o símbolo daquilo que o autor chama de “raça superior” (sic): “mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinado-a com sua tranqüila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior” (cap. 15).
Todas essas personagens têm a caracterizá-las ou a permanência no mesmo status econômico e social ou a decadência. Nenhuma sai de seu conjunto, as transformações são endógenas e não exógenas como se dará com Leonie, Pombinha, Senhorinha.

c) Mulher-sujeito. O termo “sujeito” aqui implica numa interpretação dos valores ideológicos da comunidade descrita. Assim como Romão consegue se impor afirmando-se enquanto indivíduo dentro dos padrões vigentes na sociedade, aquelas mulheres (Leonie, Pombinha, Senhorinha) também se destacam na dependência contínua ao macho e passam a exercer o poder através do sexo-luxúria. Como Romão, elas extrapolam de seu conjunto original e se realizam no conjunto complexo.
Leonie – como protótipo da mulher do cortiço que saiu para a prostituição de elite, mantém trânsito livre entre um conjunto e outro. Ela pode desfilar com os amantes pelas ruas e teatros com, a mesma leveza com que regressa ao cortiço para ver sua afilhada. Sua ascensão social permite-lhe o trânsito. O modelo de Leonie repete-se em Pombinha, que é por ela seduzida, deixando de lado seu aspecto angelical para assumir a imagem da “serpente”, que o narrador maneja para classifica o vigor do instinto e a ameaça sexual. Repete-se em termos onomásticos o determinismo: a Pombinha vai ser devorada pela leoa através da iniciação homossexual: “a serpente vencia afinal: Pombinha foi, pelo próprio pé, atraída, meter-se-lhe na boca”. Pombinha, enfim, “desfere o vôo”. Tal modelo se repete com a filha de Jerônimo/Piedade atraída por Pombinha: “a cadeia continuava e continuaria interminavelmente; o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria” (cap. 22).
Pode-se destacar ainda que, malgrado essas diferenciações quanto ao papel da mulher, existe uma constante a destacar: a estética naturalista em Azevedo acentua a supremacia do feminino sobre o masculino, da fêmea sobre o macho em proporções como esta:
soberania : escravidão: feminino: masculino

Os homens, segundo a versão de Leonie, existem para “servir ao feminino” enquanto as mulheres são “rainhas”, senhoras num “império” onde homens são “escravos”.

3.6. Reduplicação dos modelos de evolução e entropia
Como uma narrativa centrada em modelos conscientes e interessados ideologicamente em defender uma tese determinada, O Cortiço reduplica, numa série de quadros, seus modelos principais. Por exemplo, o modelo da evolução e da entropia exemplifica-se agora no confronto entre os dois cortiços: São Romã o e Cabeça de Gato.
Há que retomar e retificar aqui algumas observações que fizemos sob a expansão do cortiço São Romão. A sua horizontalidade não é completa. É relativa à verticalidade do palacete do Miranda. Na medida em que Romão vai evoluindo econômica e socialmente, seu cortiço sofre um processo de modificações também qualitativas até chegar à Av. São Romão. Alinha de ascensão do cortiço é a mesma de seu proprietário que, na verdade, funciona como uma metonímia de seu conjunto.
O novo cortiço (Cabeça de Gato) não é apenas o que o São Romão era em sua origem, mas se torna o refúgio daqueles que não evoluem nem se transformam. É um reduto de excluídos reincidentes, como Firmo, que para lá muda. Repete-se com os dois cortiços as duas linhas de ascensão e decadência que marcam a trajetória de Romão e Jerônimo, respectivamente. O capítulo 20 conta a transformação final do cortiço na Avenida São Romão: “João Romão conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito. Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com seu largo portão de cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro, tendo entre elas e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo ao meio, de cimento, imitando pedra (...) e na tabuleta nova, muito maior que a primeira, em vez de  “Estalagem de São Romão” lia-se me letras caprichosas “Avenida São Romão”.
Enquanto isso: o Cabeça de Gato à proporção que o São Romão se engrandecia, mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe, mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiros de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma cama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão” (cap. 22).
Antes que se diferenciassem tanto, os dois cortiços guardavam características de uma sociedade primitiva, realizando em sua interação todos os quesitos de uma sociedade fechada. Como tal, tinham suas regras próprias excluindo-se e opondo-se aos outros conjuntos da sociedade . Exemplo disto é como reagem diante da lei – o aparecimento da polícia. Organizam-se contra o elemento estranho-invasor como se fossem uma só comunidade. Veja-se o episódio da luta de Jerônimo/Firmo e a chegada da polícia: “João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando a todos: - Não entra a polícia! Não deixa entrar! Agüenta! Agüenta! – Não então! Não entra! Repercutiu a multidão em coro (...) Um empenho coletivo os agitava agora, todos, numa solidariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre dois rivais, estava direito! Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria com a mulher, mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna, onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida” (cap. 10).
Ainda na comparação do primitivismo desses dois conjuntos importa ressaltar as características tribais de ambos. O narrador tenta dar uma certa dignidade às lutas entre os dois cortiços convertendo a briga numa “batalha” e numa “guerra” de uma tribo contra outra. Procura-se uma nobreza para os contendores. Trazem símbolos clássicos de guerreiros. Estamos entre um torneio medieval e uma festa tribal. Se agrupam totemicamente, tomando como símbolos animais que sintetizam as características de ambos:

Carapicus (peixe) ----------------------- Cabeça de Gato (gato)

Assinalada a rivalidade nos símbolos totêmicos, ela se confirma nas cores da bandeira:

Carapicus (vermelha) ------------------ Cabeça de Gato (amarela)

O autor é explícito coincidindo o enunciado e a enunciação de sua estória: “Em meio do pátio do Cabeça de Gato arvora-se uma bandeira amarela; os carapicus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores olhavam-se no ar como um desafio de guerra” (cap.13).
Definidos totemicamente com sua bandeira os grupo se aproximam com suas armas (navalhas) e com suas músicas (danças dos capoeiras). Tem início o torneio, que culmina com o incêndio desencadeado pela Bruxa – sempre envolvida com o fogo. E para explicar a gênese do confronto, surge o narrador reafirmando a ideologia naturalista e servindo-se dos modelos da série científica: “E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo”...

4. CONCLUSÃO
Essa análise, evidentemente, não esgota o conhecimento da estrutura do livro. Centramo-nos aqui mais no nível da narração e dos personagens com incursões pelo nível da língua (gem). Fosse um trabalho maior e se teria obrigação de ampliar as observações constatando no nível da frase os modelos que regem a composição da narrativa. Uma análise estilística, por exemplo, embricaria nesse nível, mostrando que a língua de Azevedo, em sua plurivalência de nacionalidades, mostra como o francês, o italiano, o português de Portugal, o falar do cortiço, o falar dos salões se mesclam constituindo conjuntos que integralizam  a língua brasileira num sentido mais amplo. Sua  língua é mestiça como seus personagens e se espalha pelo simples e pelo complexo. Por aí se poderia chegar a tocar de novo no problema da ideologia que configurou o romance. Ideologia esta que tanto mais se configura quanto mais se sabe que a arte de Aluísio se voltava para o receptor. Sua produção tinha um endereço certo: o jornal, o teatro e uma grande massa de leitores. E parece que ele foi bem sucedido nisto, porque teria sido o nosso primeiro escritor profissional, segundo afirmou Valentim Magalhães, só tendo largado apenas para um emprego no Ministério da Relações Exteriores.
Dentro de uma concepção teórica para compreender a teoria e a prática do romance no Brasil, Aluísio teria praticado em relação à série social uma narrativa contra-ideológica, apontando as falhas do sistema ao denunciar a exploração dos cortiços (alguns dos quais pertencentes ao Conde D’Eu). Em relação à série literária, sua obra é ideológica quando cumpre à risca os preceitos naturalistas seguindo de perto o modelo europeu. Trabalhou com modelos conscientes, predominantemente, realizando uma narrativa da transparência interessada no espaço real. 

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 Azevedo, Aluísio, o Cortiço, Rio, Martins, 1968.
2 Hull, L. W. H. Historia Y Filosofia de la Ciencia, Barcelona, Ediciones Ariel, 1961, p. 328
3 Idem, ibidem, p. 330.
4 Idem, ibidem, p. 361.
5 Idem, ibidem, p. 368.
6 Idem, ibidem, p. 351.

Análise Estrutural de Romances Brasileiros, de Affonso Romano de Sant'Ana, Editora Vozes, 1973.

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